quinta-feira, 15 de maio de 2008

Caso Isabella Nardoni, por Cantardo Calligaris


Permitam-me, prezadíssimos 7 leitores, trazer à lume umas considerações sobre o caso Isabella. Sei que de tudo já se mostrou na televisão, desde o sensacionalismo até reportagens sérias, e, certamente, vocês não agüentam mais ler e ouvir sobre isso. Não queria fazer coro, mas, navegando pelo imenso mar de bits da Internet encontrei esse texto fantástico do já aplaudido Contardo Calligaris e não resisti: ei-lo. Vale a pena pensar por este lado. Segue o texto:

A turba do pega e lincha

Outro dia passei duas horas em frente à televisão. Não adiantava zapear: quase todos os canais estavam, ao vivo, diante da delegacia do Carandiru, enquanto o pai da pequena Isabella estava sendo interrogado. O pano de fundo era uma turba de 200 ou 300 pessoas.

Permaneceriam lá, noite adentro, na esperança de jogar uma pedra nos indiciados ou de gritar assassinos quando eles aparecessem, pedindo justiça e linchamento.

Mais cedo, outros sitiaram a moradia do avô de Isabella, onde estavam o pai e a madrasta da menina. Manifestavam sua raiva a gritos e chutes, a ponto de ser necessário garantir a segurança da casa. Vindos do bairro ou de longe (horas de estrada, para alguns), interrompendo o trabalho ou o descanso, deixando a família, os amigos ou, talvez, a solidão - quem eram? Por que estavam ali? A qual necessidade interna obedeciam sua presença e a truculência de suas vozes?

“Os alemães que saíram para saquear os comércios
dos judeus na “Noite de Cristal” faziam isso porque
queriam sobretudo afirmar sua diferença


Os repórteres de televisão sabem que os membros dessas estranhas turbas respondem à câmera de televisão como se fossem atores. Quando nenhum canal está transmitindo, ficam tranqüilos, descansam a voz, o corpo e a alma. Na hora em que, em uma câmera, acende-se a luz da gravação, eles pegam fogo.

Há os que querem ser vistos por parentes e amigos do bar, e fazem sinais ou erguem cartazes. Mas, em sua maioria, os membros da turba se animam na hora do ao vivo como se fossem extras, pagos por uma produção de cinema.

Qual é o script? Eles realizam uma cena da qual eles supõem que seja o que nós, em casa, estamos querendo ver. Parecem se sentir investidos na função de carpideiras oficiais: quando a gente olha, eles devem dar evasão às emoções (raiva, desespero, ódio) que nós, mais comedidos, nas salas e nos botecos do país, reprimiríamos comportadamente.

“A vontade exasperada de afirmar sua
diferença é própria de quem se sente
ameaçado pela similaridade do outro”


Pelo que sinto e pelo que ouço ao redor de mim, eles estão errados. O espetáculo que eles nos oferecem inspira um horror que rivaliza com o que é produzido pela morte de Isabella. Resta que eles supõem nossa cumplicidade, contam com ela.

Gritam seu ódio na nossa frente para que, todos juntos, constituamos um grande sujeito coletivo que eles representariam: nós, que não matamos Isabella; nós, que amamos e respeitamos as crianças - em suma: nós, que somos diferentes dos assassinos; nós, que, portanto, vamos linchar os culpados.

Em parte, a irritação que sinto ao contemplar a turma do pega e lincha tem a ver com isto: eles se agitam para me levar na dança com eles, e eu não quero ir. As turbas servem sempre para a mesma coisa. Os americanos de pequena classe média que, no Sul dos Estados Unidos, no século 19 e no começo do século 20, saíam para linchar negros procuravam só uma certeza: a de eles mesmos não serem negros, ou seja, a certeza de sua diferença social.

O mesmo vale para os alemães que saíram para saquear os comércios dos judeus na Noite de Cristal, ou para os russos ou poloneses que faziam isso pela Europa Oriental afora, cada vez que desse: queriam sobretudo afirmar sua diferença.

“Querem linchar para esquecer que ontem
voltaram bêbados e não sabem em quem bateram”


Regra sem exceções conhecidas: a vontade exasperada de afirmar sua diferença é própria de quem se sente ameaçado pela similaridade do outro. No caso, os membros da turba gritam sua indignação porque precisam muito proclamar que aquilo não é com eles.

Querem linchar porque é o melhor jeito de esquecer que ontem sacudiram seu bebê para que parasse de chorar, até que ele ficou branco. Ou que, na outra noite, voltaram bêbados para casa e não se lembram em quem bateram e quanto.

Nos primeiros cinco dias depois do assassinato de Isabella, um adolescente morreu pela quebra de um toboágua, uma criança de quatro anos foi esmagada por um poste derrubado por um ônibus, uma menina pulou do quarto andar apavorada pelo pai bêbado, um menino de nove anos foi queimado com um ferro de marcar boi. Sem contar as crianças que morreram de dengue.

A turba do pega e lincha representa, sim, alguma coisa que está em todos nós, mas que não é um anseio de justiça. A própria necessidade enlouquecida de se diferenciar dos assassinos presumidos aponta essa turma como representante legítima da brutalidade com a qual, apesar de estatutos e leis, as crianças podem ser e continuam sendo vítimas dos adultos.

Em tempo: o texto foi extraído do blog do prof. Eduardo Rabenhorst. Há boas coisas lá. Para conhecer o blog, clique aqui.

Inté.

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