quarta-feira, 21 de maio de 2008

Por que esse caso não foi à televisão?


Mais uma preciosidade extraída do blog do prof. Eduardo Rabenhorst

Cachorrinha morava no interior do Ceará. Tinha 4 anos. Quando o cheiro de comida se espalhava pelo ar, gemia, sem força, pedindo comida. Às vezes, ganhava. Outras, levava bronca. Um dia, agentes sanitários entraram na casa para fazer dedetização. Já no final da vistoria, um deles escutou um grito fraco, vindo na direção da cama.

Debaixo do colchão, sob várias peças de roupas, estava Cachorrinha. Não era um animal, mas uma menina que, desnutrida, estava quase morta. Sofria constantes ataques de violência física e psicológica por parte dos pais, que deram a ela o apelido pejorativo. O caso, relatado por profissionais do Centro de Combate à Violência Infantil (Cecovi), não é isolado. Nas últimas semanas, o Brasil ficou estarrecido com histórias de abandono, maus-tratos, infanticídio e tentativa de homicídio contra crianças. Pais que, em vez de proteger, representam aos filhos uma ameaça.

Estudos internacionais apontam que, em 70% dos casos, a violência infantil é praticada pelo pai ou pela mãe. Estatísticas do Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (Sipia), do Ministério da Justiça, confirmam a tendência. Das 496.398 ocorrências registradas de 1999 a 2005, 50% tiveram os pais como agressores. Depois da violação ao direito da convivência familiar, os casos mais citados são violência física e psicológica. Só em 2005, segundo dados preliminares do Sipia, foram registradas 70 mil ocorrências, o que significa uma média diária de 189 agressões.

Apesar de reforçar a informação de que o perigo está em casa, o Sipia não consegue retratar, numericamente, todos os casos ocorridos no Brasil. O sistema é abastecido pelos conselhos tutelares que, além de não estarem presentes em todos os municípios brasileiros, nem sempre recebem denúncias desta natureza.

Embora faltem pesquisas oficiais abrangentes, um diagnóstico elaborado pelo Laboratório de Estudos da Criança da Universidade de São Paulo (Lacri/USP), com dados coletados em hospitais, centros de saúde, SOS Criança, escolas e varas da infância, entre outros locais, identificou 129.495 casos de violência contra crianças de 1996 até o ano passado. Dessas, 32,1% eram agressões físicas, 16,1% psicológicas e 0,4%, ou 505 ocorrências, terminaram em morte. Em 2005, foram registradas 19.245 ocorrências.


Crueldade gratuita

Desde que me formei, vejo casos de pais que maltratam os filhos. Já vi criança que foi jogada na fogueira e na frigideira, com ruptura de órgãos e traumatismo por causa de chutes e cascudos, relata Lauro Monteiro, chefe do serviço de pediatria do hospital Souza Aguiar, do Rio de Janeiro.

Por receber diversos pacientes com sintomas de agressão doméstica, há 18 anos o médico fundou a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), organização não-governamental (ONG) que desenvolve programas de combate à violência infantil.

As causas dos maus-tratos infligidos aos filhos são variadas. O principal motivo é cultural. Os pais acham que o castigo físico é uma forma de educar, mas estão errados, ressalta Maria Leolina Couto Silva, coordenadora nacional do Centro de Combate à Violência Infantil (Cecovi), ONG que presta atendimento psicológico e jurídico às vítimas.

A advogada enumera outros fatores: abuso de drogas e álcool, fanatismo religioso e baixa resistência ao estresse. Segundo ela, de 20% a 30% dos casos de violência doméstica ocorrem quando os pais estão bêbados ou se drogaram. Maria Leolina também diz que religiões que interpretam a Bíblia de forma literal pregam o castigo físico para educar as crianças.

Há casos em que os pais alegaram que maltrataram os filhos porque um espírito maligno mandou. Despreparados, outros descontam na criança, o ente mais fraco da família, seus medos e frustrações. E são pessoas normais do ponto de vista patológico, diz. Estudos indicam que apenas 10% dos agressores têm distúrbios psiquiátricos.

Para Lia Junqueira, coordenadora Centro de Referência da Criança e do Adolescente (Crea), o atendimento prestado à vítima da violência deve ser cuidadoso. Se não houver um atendimento especial, a criança acaba sendo vítima duplamente da violência, diz Maria Leolina Couto Silva, coordenadora nacional do Centro de Combate à Violência Infantil (Cecovi).

Forró?

Repasso o texto do crítico musical José Teles sobre o “forró moderno”...

A música dos valores perdidos

“Tem rapariga aí? Se tem levante a mão!”. A maioria, as moças, levanta a mão.

Diante de uma platéia de milhares de pessoas, quase todas muito jovens, pelo menos um terço de adolescentes, o vocalista da banda que se diz de forró utiliza uma de suas palavras prediletas (dele só não, de todas bandas do gênero). As outras são “gaia”, “cabaré”, e bebida em geral, com ênfase na cachaça. Esta cena aconteceu no ano passado, numa das cidades de destaque do agreste (mas se repete em qualquer uma onde estas bandas se apresentam). Nos anos 70, e provavelmente ainda nos anos 80, o vocalista teria dificuldades em deixar a cidade.

O secretário de cultura Ariano Suassuna foi bastante criticado, numa aula-espetáculo, no ano passado, por ter malhando uma música da banda Calipso, que ele achava (deve continuar achando, claro) de mau gosto. Vai daí que mostraram a ele algumas letras das bandas de “forró”, e Ariano exclamou: “Eita que é pior do que eu pensava”. Do que ele, e muito mais gente jamais imaginou.

Pruma matéria que escrevi no São João passado baixei algumas músicas bem representativas destas bandas. Não vou nem citar letras, porque este jornal é visto por leitores virtuais de família. Mas me arrisco a dizer alguns títulos, vamos lá: Calcinha no chão (Caviar com Rapadura), Zé Priquito (Duquinha), Fiel à putaria (Felipão Forró Moral), Chefe do puteiro (Aviões do forró), Mulher roleira (Saia Rodada), Mulher roleira a resposta (Forró Real), Chico Rola (Bonde do Forró), Banho de língua (Solteirões do Forró), Vou dá-lhe de cano de ferro (Forró Chacal), Dinheiro na mão, calcinha no chão (Saia Rodada), Sou viciado em putaria (Ferro na Boneca), Abre as pernas e dê uma sentadinha (Gaviões do forró), Tapa na cara, puxão no cabelo (Swing do forró). Esta é uma pequeníssima lista do repertório das bandas.

Porém o culpado desta “desculhambação” não é culpa exatamente das bandas, ou dos empresários que as financiam, já que na grande parte delas, cantores, músicos e bailarinos são meros empregados do cara que investe no grupo. O buraco é mais embaixo. E aí faço um paralelo com o turbo folk, um subgênero musical que surgiu na antiga Iugoslávia, quando o país estava esfacelando-se. Dilacerado por guerras étnicas, em pleno governo do tresloucado Slobodan Milosevic surgiu o turbo folk, mistura de pop, com música regional sérvia e oriental. As estrelas da turbo folk vestiam-se como se vestem as vocalistas das bandas de “forró”, parafraseando Luiz Gonzaga, as blusas terminavam muito cedo, as saias e shortes começavam muito tarde. Numa entrevista ao jornal inglês The Guardian, o diretor do Centro de Estudos alternativos de Belgrado. Milan Nikolic, afirmou, em 2003, que o regime Milosevic incentivou uma música que destruiu o bom-gosto e relevou o primitivismo estético. Pior, o glamur, a facilidade estética, pegou em cheio uma juventude que perdeu a crença nos políticos, nos valores morais de uma sociedade dominada pela máfia, que, por sua vez, dominava o governo.

A cantora Ceca foi uma espécie de Ivete Sangalo do turbo folk (ainda está na estada, porém com menor sucesso). Foram comprados 100 mil vídeos do seu casamento com Arkan, mafioso e líder de grupo para-militares na Croácia e Bósnia. Arkan foi assassinado em 2000. Ceca presa em 2003. Ela não foi a única envolvida com a polícia, depois da queda de Milosevic, muitos dos ídolos do turbo folk envolveram-se com a justa pelo envolvimento com a poderosa máfia de Belgrado.

A temática da turbo folk era sexo, nacionalismo e drogas. Lukas, o maior ídolo masculino do turbo folk pregava em sua música o uso da cocaína. Um dos seus maiores hits chama-se White (a cor do pó, se é que alguém ignora), e ele, segundo o Guardian, costumava afirmar: “Se cocaína é uma droga, pode me chamar de viciado”. Esteticamente, além da pouca roupa, a sanfona é o instrumento que se destaca tanto no turbo folk quanto no chamado forró eletrônico, instrumento decorativo, ali muito mais para lembrar das raízes da música tradicional. Ressaltando-se que não se tem notícia de ligação entre bandas de “forró” e crime organizado. No que elas são iguaizinhas é que proliferaram em meio a débâcle de valores estéticos, morais, e éticos, e despolitização da juventude. Com a volta da governabilidade nas repúblicas da antiga Iugoslávia, o turbo folk perdeu a força, vende ainda porém muito menos do que no passado, hoje é apenas uma música popular para se dançar, e não a trilha sonora de um regime condenado por, entre outras lástimas, genocídio.

Aqui o que se autodenomina “forró estilizado” continua de vento em popa. Tomou o lugar do forró autêntico nos principais arraiais juninos do Nordeste. Sem falso moralismo, nem elitismo, um fenômeno lamentável, e merecedor de maior atenção. Quando um vocalista de uma banda de música popular, em plena praça pública, de uma grande cidade, com presença de autoridades competentes (e suas respectivas patroas) pergunta se tem “rapariga na platéia”, alguma coisa está fora de ordem. Quando canta uma canção (canção ?!!!) que tem como tema uma transa de uma moça com dois rapazes (ao mesmo tempo), e o refrão é “É vou dá-lhe de cano de ferro/e toma cano de ferro!”, alguma coisa está muito doente. Sem esquecer que uma juventude cuja cabeça é feita por tal tipo de música é a que vai tomar as rédeas do poder daqui a alguns poucos anos.

Em tempo: o texto foi extraído daqui. Preciosidade enviada por e-mail pelo amigo Ramon Rebouças.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Senhoras e Senhores, Vitorino Silva!

Sempre gostei de livros. Assim que entrei para a antiga Escola Técnica de Pernambuco, virei um rato de biblioteca. Continuei como tal na UFPE, visitanto constantemente a Biblioteca Central, onde encontrei, além de mofo, poeira e ácaros, obras valiosíssimas. Ainda hoje, na UERN, continuo explorando o mais glorioso espaço do saber. Numa destas minhas idas e vindas encontrei o Interpretação e superinterpretação, de Umberto Eco. Nesse livro o italiano defende uma tese interessante: além da idéia que o autor quer passar em seus escritos e a idéia que tem o leitor, mormente díspares, há ainda a intenção do texto.

Bom, mas o que é que isso tem a ver com o título da postagem? Quis criar aqui uma desculpa para, primeiro, apresentar o trabalho de um grande amigo, lá dos idos tempos da Escola Técnica, Vitorino Silva. Vitorino é estudante de Letras lá na UFPE e poeta, por obrigação, pois a poesia não pede, manda. A segunda é escusar-me de apresentar-lhe minha opinião diante de seus textos. Primeiro não tive tempo, como já lhes informei numa postagem anterior, e, segundo, pelo que lhes informei nos parágrafos anteriores: jamais descobrirei o que quis ele dizer e meu sentimento, diante dos poemas, será certamente diverso. Além do mais, se Umberto Eco estiver certo, o texto terá sua própria intenção e aí, amigos, jamais chegaremos a um consenso.

Sem mais delongas, apresento-lhes três poemas dele. Apreciem.

Sem Descanso

Corro
como um rio na chuva
Debalde
Inundo o tempo que me resta
com a perenidade insone da jornada

meu próprio leito me é estrada
e nessa marcha que enebria
me invade
a constante sensação de
curva

Curva que abrevia a visão
Visão distorcida pela chuva
Chuva que inunda a estrada
Estrada que obstrui a vida


Homem Combustível (Crime e Castigo)

Um homem que se propõe a andar na negra fumaça
Não percebe nada além
De sua cegueira e sufocamento

Quando, enfim, por algum motivo, a nuvem passa
Ele traz impregnado na pele o cheiro incendiado
Seu suor, cinzento
sua lágrima, carvão

Quando, no corpo, lhe escorre a água limpa
Aos seus pés, enegrecida,
Evapora em névoa de escuridão.


LISPECTOR

Escutar a palavra estranha,
cinzas de um sentido a mais,
foi finalmente encontrar
a luz que desespera,
o cativeiro que aconchega.

a palavra que é mister tatear,
acostumar-se.
(o talo da rosa no ouvido)
(o dragão chinês no intestino)

“a familiaridade que condena por insistir-se alheia”

a palavra mesmo
que remete a nada
e não precisa se explicar

a matéria bruta do silêncio,
presente, penetrante,
que, quando ignorada,
permanece latente
e sobretudo perpétua.

Caso Isabella Nardoni, por Cantardo Calligaris


Permitam-me, prezadíssimos 7 leitores, trazer à lume umas considerações sobre o caso Isabella. Sei que de tudo já se mostrou na televisão, desde o sensacionalismo até reportagens sérias, e, certamente, vocês não agüentam mais ler e ouvir sobre isso. Não queria fazer coro, mas, navegando pelo imenso mar de bits da Internet encontrei esse texto fantástico do já aplaudido Contardo Calligaris e não resisti: ei-lo. Vale a pena pensar por este lado. Segue o texto:

A turba do pega e lincha

Outro dia passei duas horas em frente à televisão. Não adiantava zapear: quase todos os canais estavam, ao vivo, diante da delegacia do Carandiru, enquanto o pai da pequena Isabella estava sendo interrogado. O pano de fundo era uma turba de 200 ou 300 pessoas.

Permaneceriam lá, noite adentro, na esperança de jogar uma pedra nos indiciados ou de gritar assassinos quando eles aparecessem, pedindo justiça e linchamento.

Mais cedo, outros sitiaram a moradia do avô de Isabella, onde estavam o pai e a madrasta da menina. Manifestavam sua raiva a gritos e chutes, a ponto de ser necessário garantir a segurança da casa. Vindos do bairro ou de longe (horas de estrada, para alguns), interrompendo o trabalho ou o descanso, deixando a família, os amigos ou, talvez, a solidão - quem eram? Por que estavam ali? A qual necessidade interna obedeciam sua presença e a truculência de suas vozes?

“Os alemães que saíram para saquear os comércios
dos judeus na “Noite de Cristal” faziam isso porque
queriam sobretudo afirmar sua diferença


Os repórteres de televisão sabem que os membros dessas estranhas turbas respondem à câmera de televisão como se fossem atores. Quando nenhum canal está transmitindo, ficam tranqüilos, descansam a voz, o corpo e a alma. Na hora em que, em uma câmera, acende-se a luz da gravação, eles pegam fogo.

Há os que querem ser vistos por parentes e amigos do bar, e fazem sinais ou erguem cartazes. Mas, em sua maioria, os membros da turba se animam na hora do ao vivo como se fossem extras, pagos por uma produção de cinema.

Qual é o script? Eles realizam uma cena da qual eles supõem que seja o que nós, em casa, estamos querendo ver. Parecem se sentir investidos na função de carpideiras oficiais: quando a gente olha, eles devem dar evasão às emoções (raiva, desespero, ódio) que nós, mais comedidos, nas salas e nos botecos do país, reprimiríamos comportadamente.

“A vontade exasperada de afirmar sua
diferença é própria de quem se sente
ameaçado pela similaridade do outro”


Pelo que sinto e pelo que ouço ao redor de mim, eles estão errados. O espetáculo que eles nos oferecem inspira um horror que rivaliza com o que é produzido pela morte de Isabella. Resta que eles supõem nossa cumplicidade, contam com ela.

Gritam seu ódio na nossa frente para que, todos juntos, constituamos um grande sujeito coletivo que eles representariam: nós, que não matamos Isabella; nós, que amamos e respeitamos as crianças - em suma: nós, que somos diferentes dos assassinos; nós, que, portanto, vamos linchar os culpados.

Em parte, a irritação que sinto ao contemplar a turma do pega e lincha tem a ver com isto: eles se agitam para me levar na dança com eles, e eu não quero ir. As turbas servem sempre para a mesma coisa. Os americanos de pequena classe média que, no Sul dos Estados Unidos, no século 19 e no começo do século 20, saíam para linchar negros procuravam só uma certeza: a de eles mesmos não serem negros, ou seja, a certeza de sua diferença social.

O mesmo vale para os alemães que saíram para saquear os comércios dos judeus na Noite de Cristal, ou para os russos ou poloneses que faziam isso pela Europa Oriental afora, cada vez que desse: queriam sobretudo afirmar sua diferença.

“Querem linchar para esquecer que ontem
voltaram bêbados e não sabem em quem bateram”


Regra sem exceções conhecidas: a vontade exasperada de afirmar sua diferença é própria de quem se sente ameaçado pela similaridade do outro. No caso, os membros da turba gritam sua indignação porque precisam muito proclamar que aquilo não é com eles.

Querem linchar porque é o melhor jeito de esquecer que ontem sacudiram seu bebê para que parasse de chorar, até que ele ficou branco. Ou que, na outra noite, voltaram bêbados para casa e não se lembram em quem bateram e quanto.

Nos primeiros cinco dias depois do assassinato de Isabella, um adolescente morreu pela quebra de um toboágua, uma criança de quatro anos foi esmagada por um poste derrubado por um ônibus, uma menina pulou do quarto andar apavorada pelo pai bêbado, um menino de nove anos foi queimado com um ferro de marcar boi. Sem contar as crianças que morreram de dengue.

A turba do pega e lincha representa, sim, alguma coisa que está em todos nós, mas que não é um anseio de justiça. A própria necessidade enlouquecida de se diferenciar dos assassinos presumidos aponta essa turma como representante legítima da brutalidade com a qual, apesar de estatutos e leis, as crianças podem ser e continuam sendo vítimas dos adultos.

Em tempo: o texto foi extraído do blog do prof. Eduardo Rabenhorst. Há boas coisas lá. Para conhecer o blog, clique aqui.

Inté.