sábado, 28 de junho de 2008

Sobre palavras e pensamentos (parte 1)


O que dizer após um beijo? Às vezes, nenhuma palavra nos socorre em momentos tão especiais... Estranho, não é? Há ainda de se considerar como nos expressamos. Às vezes, não existem palavras, digamos, prontas e temos que as inventar. Trago à lume dois exemplos fortíssimos (destacados): veja, primeiro, este poema de Manuel Bandeira:

Neologismo

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
que traduzem a ternura mais funda
e mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.

Agora este trecho de Uma canção inédita, de Edu Lobo e Chico Buarque:

Se você beijar um outro, pode se partir
A valsa
Mas se roendo-as-unhasmente me quiser ouvir
Descalça no breu
Pé ante pé
Abra o peito bem devagar
E deixe
Sete notas a vibrar
E feche

Observem: no primeiro texto o sentimento do poeta é muito mais que amor (atentem: o sentimento, melhor dizendo, o verbo é intransitivo...). Entretanto, como expressar isso se não há uma palavra pronta, apta a mostrar tudo aquilo que ele sente pela amada? No segundo caso, não é apenas nervosismo, é um nervosismo de
roer as unhas, isto é, roendo-as-unhasmente. Fantástico!

Pois bem. Nesta postagem quereria conversar com vocês, queridos 5 leitores, não sobre beijos, mas sobre palavras e pensamentos. Afinal, como é que um pensamento se transforma em palavra? Como uma idéia ganha forma? Nem eu, nem os maiores estudiosos da filosofia da mente, sabemos. Sobre esse ponto, lúcido é o ensinamento de Sexto Empírico, em seu Contra os Matemáticos (os destaques são meus):

E, mesmo admitindo que seja concebido [o ente], não pode ser comunicado a outro. Com efeito, se os entes, os que existem fora de nós, são visíveis, audíveis e em geral perceptíveis, e destes os visíveis são captáveis com a visão, os audíveis com a audição e não o contrário, como é possível então manifestá-los a outro? Com efeito, aquilo com que manifestamos é a palavra, mas a palavra não coincide com os entes existentes. Portanto, aos outros não manifestamos os entes, mas a palavra que é diversa dos entes concretos. Então, como a realidade visível não pode se tornar audível e vice-versa, também o ente que se concretiza fora de nós não pode se tornar palavra nossa. Não sendo uma palavra, o ente não pode ser evidenciado a outro.”

É difícil dizer como se dá esse fenômeno. O mais certo, entretanto, é perceber a magnitude que ele tem. A linguagem tem o poder de criar e recriar fatos: quem nos relata o recria, o refaz para si, enquanto os ouvintes o criam mentalmente. Interessante, não é? Mais impressionante ainda é o conteúdo que damos às palavras. Você, caro leitor, já imaginou o porquê a palavra coisa, por exemplo, significa tantas coisas?

O Direito, assim como qualquer ciência Ética (Ética aqui entendida como a escolha da melhor assertativa entre duas, as quais são ambas possíveis, mas excludentes, qual a lição dada pelo prof. João Maurício, em sua Filosofia do Direito) marcada pela linguagem, não está imune a isso. Exemplos claros são as definições de homem médio, dignidade da pessoa humana, Estado democrátido de direito, só para citar os mais comuns. Observe que os exemplos dados tem alta carga de subjetividade e podem servir aos mais variados discursos e, neles, assumir os mais discrepantes (algumas vezes até contraditórios) sentidos. E é aí, meus caros, onde mora o perigo...

Semestre acadêmico passado (acadêmico, pois terminamos 2007.2 agora em 2008...) uma colega de turma apresentou em sua monografia um tema que ganhou força após os atentados de 11 de setembro, nos EEUU: o direito penal do inimigo. Segundo o entendimento do mentor dessa teoria, aqui comentada muito resumidamente, deveria haver dois códigos penais: um para os cidadãos, mais brando; e outro para os
inimigos, mais severo. Mais: tal direito penal deveria atuar antes dos delitos, isso porque os inimigos põem em risco o pacto social, ou, mais claramente, a sobrevivência da sociedade como tal. Mas, quem são os inimigos? Tal teoria, em um Estado totalitário, é por demais perigosa, uma vez que os inimigos”, melhor dizendo, a palavra inimigopode assumir qualquer conteúdo e pôr em risco (vejam só!) a própria sociedade.

Um comentário:

Anônimo disse...

As palavras constituem uma tentativa de reconstrução do fenômeno, seja ele um pensamento ou não. E como toda tentativa, não demonstra a realidade tal qual ela se apresenta. "Afinal, como é que um pensamento se transforma em palavra? Como uma idéia ganha forma?"... Perguntas difíceis de responder. Acaso o processo de transformação do pensamento em palavra, bem como o de formatização da idéia são meros resultados de interações químicas? Em todo caso, concordo que a linguagem tem o poder de criar e recriar fatos, estando subordinada à subjetividade de cada pessoa. Desta forma, teorias como a do direito penal do inimigo são mesmo perigosas dada a multiplicidade de sentidos que a palavra "inimigo" pode assumir.